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Como Ler: Sugestões para uma prática produtiva da leitura

José Carlos Bruni1

 

Aprende-se a mecânica de ler aos sete anos de idade. No entanto, a leitura, concebida como instrumento de compreensão de uma ideia, é processo bem mais complexo. Seu aprendizado não pode ser fixado em uma idade determinada e o aprimoramento da técnica de leitura é tarefa de toda uma vida.

Vamos tratar, aqui, só de alguns aspectos mais importantes dessa técnica e de modo extremamente esquemático.

A leitura é exercida sobre um TEXTO, nome genérico para toda e qualquer porção de linguagem escrita. As dimensões do texto são variáveis. Textos podem ser: uma obra inteira, com vários volumes; um livro inteiro; uma parte de um livro, com vários capítulos; um capítulo de um livro; às vezes, uma página apenas, mas de conteúdo bastante rico.

O TEXTO CIENTÍFICO,2 caracterizado por um certo rigor de pensamento e expressão, uma certa ordem na concatenação das ideias e pela demonstração das afirmações, comporta uma leitura interna e uma análise externa. A leitura interna atém-se ao que o texto diz explicitamente. A análise externa utiliza dados que não aparecem no texto, mas que o explicam.

 

A. LEITURA INTERNA

1. A ideia básica

Ler é, fundamentalmente, o ato de apropriação da IDEIA CENTRAL DO TEXTO, isto é, da ideia principal, básica, que contém a essência do texto.

Esse deve ser o princípio norteador de toda leitura. Todos os outros princípios estão subordinados a esse e devem contribuir para a sua realização. A ideia básica não está localizada em um ponto perfeitamente identificável do texto. Não se constitui em uma ou duas frases do texto. A ideia básica anima o texto inteiro, podendo transparecer mais claramente em certas frases do que em outras. Há certos trechos mais “quentes”, em que certas frases são muito importantes. Mas a leitura desses trechos não é suficiente para produzir a ideia básica do texto.

Tendo em vista essas considerações, podemos tentar fixar a PRIMEIRA REGRA da técnica da leitura:

PRIMEIRA REGRA
1. Ler inicialmente o texto inteiro, para obter uma visão de conjunto, do todo.

Nessa leitura, deve-se procurar prestar atenção apenas no que se destaca, deixando-se de lado os pormenores, o que não é essencial, como exemplos, repetições, dados ilustrativos etc.

Terminada essa primeira leitura, necessariamente a mais superficial, é interessante tentar fazer, mentalmente ou por escrito, um apanhado geral de ideias que se revelaram mais salientes, que mais chamaram a atenção, das que formam um conjunto global, sem consultar o texto novamente. Essa ideia geral será guia para os passos restantes do trabalho de leitura.

2. As ideias secundárias

Como vimos, a ideia básica percorre o texto inteiro, isto é, ela não se apresenta de chofre, mas é o desenrolar ordenado do discurso, são partes sucessivas do discurso que formam a ideia básica. A ideia básica vai estruturar o texto, vai comandar a articulação das várias partes do texto.

Em geral, todo texto encontra-se dividido em partes, cada uma contendo ideias, não a central, mas outras secundárias, acessórias, que servem de apoio para a central. As partes que se sucedem no texto estão relacionadas entre si de um modo determinado e é esse modo de relacionamento das diversas partes entre si que chamamos de estrutura de um texto.

Com isso, podemos formular a SEGUNDA REGRA de leitura:

SEGUNDA REGRA
2. Na segunda leitura, procurar identificar as partes do texto que contêm as ideias secundárias, bem como o modo como estão relacionadas.

Nessa leitura, já mais aprofundada que a anterior, deve-se prestar atenção aos pormenores, aos elementos subordinados à ideia central, como os exemplos, os dados ilustrativos e como de uns se passa aos outros.

3. Os conceitos

As partes de um texto, por sua vez, são compostas por vários elementos que podemos chamar, de maneira geral, de CONCEITOS, ou seja, as ideias mais elementares de um texto. São como os tijolos de uma casa, assim como as partes corresponderiam a seus vários cômodos. A análise do texto deve chegar aos conceitos que o constituem. Daí a TERCEIRA REGRA da leitura:

TERCEIRA REGRA
3. Uma terceira leitura do texto deve apreender os vários elementos componentes de suas diferentes partes: os conceitos.

Trata-se, evidentemente, da leitura mais cuidadosa, mais minuciosa. Não é necessário ter em mente, a cada momento, a ideia básica, mas deve-se tentar compreender as minúcias das ideias, ou antes, os elementos mínimos de que essas ideias são formadas. Procura-se, então, determinar o sentido de cada palavra, servindo-se das indicações dadas no próprio texto.

4. Os níveis do texto

A leitura interna de um texto deve, portanto, captar sua ideia básica, sua estrutura e seus conceitos. Trata-se de um movimento que parte do mais geral, do mais global, para terminar no mais particular, no mais elementar. Podemos chamar a ideia básica, a estrutura e os conceitos de NÍVEIS de um texto. A leitura correta é aquela que consegue apreender os vários níveis do texto sem confundir um com o outro. Há outros níveis — menos importantes — mas que convém conhecer para não imaginar que todo texto tenha apenas os mencionados. Quando em um texto predomina a intenção polêmica, por exemplo, devemos tomar cuidado com os recursos de estilo, como a ironia, para não confundir o que o autor afirma com aquilo que ele próprio critica.

RESUMO
Em suma, deve-se ler um texto científico três vezes. A primeira leitura deve apreender a ideia básica, a segunda deve procurar as partes e sua concatenação e a terceira deve fixar os conceitos.

Obs: A prática constante da leitura de textos científicos vai aos poucos dispensando o leitor das três leituras obrigatórias; com o treino e o tempo, já numa primeira leitura pode-se distinguir, com bastante segurança, os vários níveis do texto. Para o principiante, porém, estudar um texto significa lê-lo, no mínimo, três vezes.

 

B. ANÁLISE EXTERNA

Todo texto está inserido em um CONTEXTO. Ao contrário do texto, o contexto é invisível, isto é, não se apresenta diretamente ao leitor. O contexto deve ser procurado, pesquisado, reconstruído.

Contexto é o conjunto de elementos que cercam, de algum modo, o texto. O contexto lógico é composto pelos elementos de ordem intelectual que envolvem o texto. Tudo aquilo que antecede logicamente o texto e de que o texto depende pode ser chamado de os PRESSUPOSTOS do texto. Todas as consequências que o texto acarreta, tudo aquilo a que o texto leva, pode ser chamado de as IMPLICAÇÕES do texto.

 

PRESSUPOSTOS TEXTO
CONTEXTO
IMPLICAÇÕES

 

O contexto histórico indica o conjunto de acontecimentos — fatos de ordem política, econômica e social — que determinam o conteúdo do texto. Todo o texto tem uma data — a data de sua produção — que o marca como produto de uma história e de uma época. O contexto histórico ilumina essa temporalidade do texto.

O trabalho de leitura exaustiva ou total deve dar conta da estrutura interna do texto (compreensão das ideias nele manifestas), bem como de sua situação histórica (compreensão dos fatores determinantes do texto, mas que se situam fora dele).

Só depois de compreendido, um texto pode ser discutido, criticado, aceito ou rejeitado.

 


 

Trecho extraído de um arquivo PDF (compartilhado no grupo @ObsidianBR no Telegram).

 

  1. Professor do Departamento de Sociologia da USP. Material didático distribuído em 1983, rediagramação e revisão por Ana Lúcia Schritzmeyer (Departamento de Antropologia, USP, 2004).

  2. O esquema aqui proposto aplica-se especialmente a textos de Ciências Humanas.

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